quarta-feira, 11 de junho de 2008

Primado do Pré-Discurso

Entende-se por “princípio” a proposição que se põe no início de uma dedução, e que não é deduzida de nenhuma outra dentro do sistema considerado, sendo admitida, provisoriamente, como inquestionável. O princípio se relaciona a pontos de probabilidade em um determinado assunto, que permite a formulação de regras ou normas a partir da interpretação de fenômenos e eventos observáveis. As regras e normas ao mesmo tempo dependem e co-criam um contexto particular que orientará a investigação. O princípio compõe a porção subjacente à base de uma análise normativa, que será o objeto do trabalho de investigação. Ao reduzir-se uma regra a seu princípio torna-se mais fácil a argumentação, já que o princípio é, ainda que temporariamente, inquestionável. É algo que o analista toma como verdadeiro para fundamentar o trabalho investigativo.

No intuito de buscar uma demonstração do modo pelo qual história e discurso se interpelam, Dominique Maingueneau inicia seu trabalho em Gênese dos Discursos propondo o princípio do Primado do Interdiscurso. Todavia, já no início da formulação do que seria o Primado do Interdiscurso, Maingueneau reconhece a complexidade do conceito:

é necessário afinar este termo muito vago para nosso propósito e substituí-lo por uma tríade: universo discursivo, campo discursivo, espaço discursivo (MAINGUENEAU, 2005, p. 27).

Maingueneau prefere definir o Primado do Interdiscurso através dos três conceitos listados acima. Sírio Possenti ajuda-nos a esclarecer o que Maingueneau entende por interdiscurso, a partir da presença do Outro no Mesmo:

Assim, o Outro não deve ser pensado como uma espécie de “envelope” do discurso nem um conjunto de citações. No espaço discursivo, o Outro não é nem um fragmento localizável, uma citação, nem uma entidade exterior; nem é necessário que seja localizável por alguma ruptura visível da compacidade do discurso. Ele se encontra na raiz de um Mesmo sempre já descentrado em relação a si próprio, que não é em momento algum passível de ser considerado sob a figura de uma plenitude autônoma. O Outro é o que faz sistematicamente falta a um discurso, é aquela parte de sentido que foi necessário que o discurso sacrificasse para constituir sua identidade. (POSSENTI, 2003, p. 253-269).

A palavra “primado” vem do latim primus “primeiro”, que por sua vez vem do pré-itálico prismos, superlativo do latim antigo pri "antes". O termo latino primus é o mesmo que dá origem a princeps, “príncipe”. Quando Maingueneau fala sobre o Primado do Interdiscurso, ele está se referindo à primazia, à soberania (como à força de um soberano) que o interdiscurso tem sobre o próprio discurso, tendo em vista sua concepção de identidade negociada, em que a presença da alteridade no Mesmo não é reflexo de apenas um outro com que se dialoga, mas uma força constitutiva. Nossa proposta é que o interdiscurso não só tem primazia sobre o discurso, mas é reflexo da presença do pré-discurso no discurso.

A palavra que melhor representa esta conjugação entre princípio e autoridade é arkhé. Ao mesmo tempo em que dá origem ao termo “arquitetura” (“princípio construtivo”) dá origem a “hierarquia” (“poder elevado”, “poder sagrado”), assim como ao termo arkhon, nome dado a um dos nove magistrados na Atenas antiga. Portanto, a arkhé, tema de busca dos filósofos pré-socráticos, reúne em si tanto a idéia de “primado”, “governo”, quanto a idéia de “princípio”, “início”, como no início do Evangelho de João:

en arch hn o logoV kai o logoV hn proV ton qeon kai qeoV hn o logoV
(en archê ên o logos kai o logos ên pros ton theon kai theos ên o logos)
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”.

Dessa maneira, o pré-discurso não é apenas uma força subjacente ao próprio discurso, mas um princípio que, aqui defendemos, deve orientar a investigação discursiva.

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