quinta-feira, 12 de junho de 2008

Magnificação Trófica

A dinâmica de operação do etos pré-discursivo ainda não foi contemplada pelos diversos estudos da AD. Portanto, buscamos com este trabalho propor um modelo teórico que explique a dinâmica de produção e atualização do etos pré-discursivo. Aqui inserimos a tese principal deste estudo, a de que o etos pré-discursivo pode comportar a imagem pregressa do enunciador a partir da visão do nome próprio como um designador indireto, semelhante à teoria defendida por John Searle em seu artigo Proper Names (1958).

Explorando a teoria dos nomes próprios, já analisada por Maingueneau (Análise de textos de comunicação, p. 182 a 186), propomos um novo conceito, que chamaremos de magnificação trófica, porque a teoria tradicional de Maingueneau sobre o etos pré-discursivo não nos elucida sobre a maneira pela qual um locutor vai construindo seu etos, e não explica com mais detalhes quanto ao modo pelo qual é possível retomar esta imagem de si, construída previamente, em uma futura enunciação. O conceito de magnificação trófica busca dar conta deste processo de produção, retomada e atualização do etos.

No artigo em questão, Searle defende uma posição acerca da natureza dos nomes próprios condizente com as idéias da Teoria Descritivista de Gottlob Frege, em On sense and nominatum, e Bertrand Russel em On denoting, e que consiste na tese segundo a qual todo nome próprio é associado a um determinado conjunto de descrições. Em outras palavras, para Searle, um nome é um designador indireto. Um nome próprio tem sentido não porque descreva características de um objeto, mas porque está logicamente conectado com o conjunto das descrições definidas necessárias e suficientes para a descrição de um objeto particular.

Não aplicamos, aqui, a teoria de Searle em sua forma original, já que aceitamos parte da crítica oferecida pela Teoria Causal de Saul Kripke (Namming and Ncessity). Substituímos o termo de Searle “descrições definidas” por “índices descritivos”, mais abrangente e mais pertinentes à nossa análise discursiva. Todavia, entendemos que a filosofia analítica é de grande utilidade para se expandir o conceito de etos pré-discursivo, ainda pouco explorado, inclusive na obra de Maingueneau.

Em Análise de textos de comunicação (p. 182 a 186) Maingueneau adota claramente a posição de Searle (e da tradição descritivista fregeana) do nome próprio como fruto da união de um conjunto indeterminado descrições definidas. Ele afirma que

Quando utilizamos um nome próprio para designar um referente, podemos também utilizar um grupo nominal com artigo definido para designar o mesmo referente... O grupo nominal com artigo definido, que pode designar tanto um indivíduo (“o carro azul”) como uma pluralidade de indivíduos (“os filhos de Jules”), denomina-se descrição definida. (MAINGUENEAU, 2001, p. 182)

Todavia, como Maingueneau bem lembra no decorrer desse texto, utilizar uma descrição definida significa obrigar o co-enunciador a escolher um indivíduo singular, caracterizando-o por intermédio de uma ou várias propriedades. As descrições definidas, portanto, enquanto peças constituintes de um nome próprio, são utilizadas para isolar um indivíduo, ou seja, isolar um único referente, estabelecendo características (através deste grupo nominal com artigo definido) que sejam pertinentes àquele único referente a que nos dirigimos.

Todavia, para além das definições (MAINGUENEAU, 2001, p. 183) de “descrições autônomas” (que remetem a um único referente) e “descrições dependentes do contexto” (quando o co-enunciador deve colocar o grupo nominal em relação com o contexto para identificar de que referente se trata), alteramos o termo “descrições definidas” (que são compostas pela forma ARTIGO DEFINIDO + NOME, em que o artigo definido individualiza o referente), pela expressão “índices descritivos”, já que o modelo que aqui propomos aceita não só características que pertencem unicamente ao indivíduo designado pelo nome próprio, mas adjetivos gerais como “mulher”, “atriz”, “bonita”, etc.

Portanto, propomos uma teoria mista, que chamamos de magnificação trófica, termo emprestado da biologia e que se relaciona à acumulação de substâncias em um organismo vivo. Acumulação esta tanto maior quanto maior for o nível trófico do indivíduo na cadeia alimentar. Ou seja, a magnificação trófica é caracterizada pelo acúmulo progressivo de determinado composto no corpo de organismos vivos pertencentes aos diversos níveis das cadeias e teias alimentares.

Explicamos. Cada ser vivo é parte importante de uma cadeia alimentar, e o aumento ou diminuição do número de indivíduos de uma determinada espécie influencia, direta ou indiretamente, a vida de várias outras espécies. Os vegetais ocupam o nível trófico dos produtores, os animais herbívoros são os consumidores primários, os carnívoros, secundários, e assim por diante.

Imagine que um coelho coma grande massa de capim contendo DDT. Este coelho, ao ser devorado por um lobo, fará com que a concentração de DDT no lobo seja maior do que no coelho que lhe serviu de alimento. Se um urso devorar o lobo, a concentração do DDT também será maior em seu organismo. E o fenômeno irá se repetindo, aumentando (magnificando), assim, a presença de tal composto nos organismos.

Dessa maneira, uma vez ingeridos pelos seres vivos, os produtos tóxicos concentram-se cada vez mais ao longo das cadeias alimentares, pois não têm participação no metabolismo e sua eliminação através de fezes, urina ou suor é lenta e difícil.

Portanto, organismos nos últimos níveis acabam por ingerir altas doses destes mesmos tóxicos. Este fenômeno, conhecido como magnificação trófica, é responsável pelo acúmulo de metais pesados (como chumbo e mercúrio) no corpo dos seres vivos.

Como as substâncias lipossolúveis (que se dissolvem no tecido adiposo do animal e ali ficam acumuladas) não podem ser eliminadas pela urina, e se o organismo não possui enzimas que degradem estas substâncias, elementos como o chumbo e o DDT ficam acumulados no animal. Assim, como vimos, quando este animal é devorado por outro, a gordura é absorvida pelo intestino, levando consigo a substância tóxica que, em seguida, fica acumulada no tecido gorduroso do predador.

Para a compreensão do conceito da magnificação trófica, urge que se explique, primeiro, o conceito de “cadeia alimentar” ou “cadeia trófica”.

A cadeia alimentar é a maneira de expressar as relações de alimentação entre os organismos de uma comunidade, iniciando-se nos produtores (plantas) e passando pelos herbívoros (consumidor primário), predadores (consumidor secundário) e decompositores (fungos e bactérias), por esta ordem. Ao longo da cadeia alimentar há uma transferência de energia e de nutrientes (a energia diminui ao longo da cadeia alimentar), sempre no sentido dos produtores para os decompositores.

Já que em cada nível da cadeia alimentar há muita perda de energia, um predador deve consumir muitas presas, incluindo todas as substâncias acumuladas em seu tecido adiposo. Por exemplo, apesar de o mercúrio estar presente no mar em pequeníssimas quantias, ele é absorvido pelas algas. O peixe que consumir essas algas também ingere o mercúrio. Este processo explica porque peixes predatórios como o tubarão, ou aves predatórias como as águias, possuem concentrações elevadas de mercúrio em seus tecidos, em uma proporção maior do que se tivessem sido expostos diretamente ao mercúrio.

O termo “magnificação trófica” também é conhecido como “biomagnificação”, “bioamplificação” ou “magnificação biológica”. Preferimos “magnificação trófica” pois não traz o termo “bio”, o que poderia induzir a erro, apesar de Foucault utilizar termos como “biopoder” sem criar confusões com a biologia.

A primeira vez que o termo “magnificação trófica” apareceu no título de uma publicação científica foi em um artigo de 1973 (Biomagnification of p,p'-DDT and methoxychlor by bactéria), de B. Johnson e J. Kennedy. Todavia, o conceito foi elaborado pela primeira vez por Rachel Carson, em seu livro Silent Spring, de 1962. Porém, embora no terceiro capítulo deste livro Carson descreva o processo, ela não lhe dá o nome de magnificação trófica. Curiosamente, ela concentrou suas análises em sistemas terrestres, enquanto a maioria dos trabalhos que tem sido realizados nesta área estudam sistemas aquáticos. Carson chamou atenção para este fenômeno, e outros ecologistas e toxicologistas passaram a examinar sua ocorrência em muitos sistemas. Conforme o DDT, o mercúrio e outras substâncias lipofílicas (que ficam acumuladas no tecido gorduroso do animal) foram sendo descobertas em elevadas concentrações nos animais pertencentes aos níveis mais altos da cadeia alimentar, em pesquisas desenvolvidas durante toda a década de 70, o conceito da magnificação trófica se estabeleceu no meio científico. A grande maioria dos textos introdutórios de ecologia e de ciência ambiental trazem o conceito da magnificação trófica. Quanto ao etos, a semelhança com o processo da magnificação trófica se dá pelo fato de que, em cada enunciação, o locutor vai acrescentando índices descritivos a seu etos, de modo que as características agregadas à sua pessoa podem ser acumuladas na memora coletiva e retomadas em futuras enunciações. Para tanto, convém que analisemos o modo pelo qual Maingueneau interpreta o conceito de “nomes próprios”, que é muito semelhante à idéia defendida por Searle em seu artigo Proper Names (1958).

Voltando, portanto, à teoria de Searle, adotada por Maingueneau, que entende os nomes próprios como compostos por grupos de descrições definidas (que reformulamos e batizamos com o nome “magnificação trófica”), oferecemos um exemplo. O nome “Aristóteles”, neste sentido, seria composto, segundo Searle (1958), por um grupo de descrições do tipo:

1.o fundador da lógica formal;
2. o melhor aluno de Platão;
3. o professor de Alexandre;
4. o famoso filosofo grego chamado ‘Aristóteles’;
5. o maior filósofo da antiguidade.

Segundo a magnificação trófica, entendemos que este grupo disjunto (em que as unidades são independentes) e indeterminado vai sendo acrescido de novos índices descritivos conforme o enunciador vai se apresentando em público e proferindo seus enunciados, promovendo, assim, uma magnificação trófica de seus termos descritivos, o que determina a construção constante de um etos pré-discursivo. Como exemplo, retomo Maingueneau (MAINGUENEAU, 2006, p. 69). Ele cita a Carta a todos os franceses, de 1988, escrita por F. Mitterand, em que ele compara sua própria enunciação à fala de um pai de família que conversa à mesa com seus parentes. Neste momento, Mitterand adicionou a seu etos o índice descritivo “pai de família”, ou “homem de família”, ou mesmo “pessoa que se preocupa com os valores da família”. Estes índices ficam acumulados na memória coletiva e podem ser por ele retomados, por exemplo, quando em um futuro debate público, lhe fosse perguntado sobre a importância da família no mundo atual.

Observado com mais cautela, o conceito da magnificação trófica é consoante com o Maingueneau que já havia abordado:

Se o jorgador “Carter” trocar de time de basquete e for jogar em Le Mans, podemos atribuir-lhe outras descrições definidas (por exemplo, não será mais “o Antibense”, mas “o habitante de Le Mans”); contudo, nunca deixará de ser “Carter”. (MAINGUENEAU, 2001, p. 184).

“Carter” nunca deixará de ser “Carter” porque este nome próprio é composto por descrições definidas que o individualizam, algumas autônomas e outras dependentes do contexto. Nosso modelo, porém, comporta não só as descrições definidas mas também índices descritivos gerais, que não constituem uma necessidade vinculada aos nomes próprios.

Como afirmou Amossy (2005, p.9), “todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si”. Nossa proposta é a de que esta construção da imagem de si é um processo contínuo, sendo que, em cada pronunciamento, novos índices descritivos vão sendo acrescidos e passam a integrar o etos do locutor. Dessa maneira, em cada enunciação, esta “imagem de si” vai sendo acumulada (magnificada), tornando possível ao enunciador retomá-la em suas enunciações futuras. Isto, em conformidade com Maingueneau, quando afirma (evidenciando o momento em que as enunciações anteriores são retomadas) que “o ethos está crucialmente ligado ao ato de enunciação, mas não se pode ignorar que o público constrói também representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele fale” (2006, p. 57). Ou seja, o etos vai sendo instalado na “memória coletiva” (MAINGUENEAU, 1999, p.81), e passa a compor a “cena de fala”, que deverá ser validada (positivada) pelo locutor a fim de que o auditório possa incorporar-se a seu discurso.

Ao abordar a questão da imagem de marca, Maingueneau nos oferece um exemplo muito próximo à teoria da magnificação trófica:

A evolução dessa imagem se deve em boa parte aos discursos que a empresa emite e emitiu sobre ela mesma e sobre seus produtos, em particular pela publicidade. Por mais que uma marca se coloque como uma identidade que transcende os enunciados que ela produz, ela é, na realidade, modificada por esses enunciados: tais enunciados podem reforçar ou, ao contrário, modificar esta imagem (MAINGUENEAU, 2001, p. 212).

Fica evidente, portanto, que não só a imagem que se tem de uma empresa, mas seu etos, são construídos por seus próprios enunciados, que podem reforçar esta imagem (através do que chamamos de enunciação etos-corroborante e enunciação etos-atualizadora) ou modificá-la (através do que chamamos de enunciação etos-fagocitante).

Além disso, já que o nome de marca é um tipo de nome próprio (MAINGUENEAU, 2001, p. 208), estas condições acima são válidas também para os nomes de pessoas, e seu respectivo etos. O que nossa teoria traz de novidade é o etos putativo, que se dá quando terceiros, através de suas enunciações, contribuem para a construção do etos de uma pessoa/marca. Em um trabalho futuro explicaremos o modo de operação do etos putativo.

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