quarta-feira, 11 de junho de 2008

Etos Putativo

O etos putativo é criado por enunciados que terceiros fazem sobre o locutor em questão, fazendo com que sejam depositados, na memória coletiva, índices descritivos que configuram um etos particular relativo ao nome próprio do enunciador. O termo “putativo”, do latim putativus “presumido”, da raiz putare “imaginar”, e tem a mesma origem da palavra “reputação”. Desse modo, porque é fruto da enunciação de um outro, está na ordem de uma “reputação”, de um etos presumido. Além disso, assim como no caso do “crime putativo” (ou “delito putativo”) que se dá quando o agente imagina que a conduta por ele praticada constitui crime, mas, em verdade, constitui uma conduta legal, o etos putativo também está na ordem de um etos imaginário, ou artificial, já que, segundo se entende, o etos de um sujeito só pode ser produzido por ele mesmo, e não por terceiros.
Julgamos pertinente seguir à análise com uma exemplificação. Um dos casos mais explícitos da construção de um etos putativo é o da função dos críticos (de arte, de cinema, de literatura, etc). Isto porque este tipo de discurso, legitimado através dos estereótipos do “mundo ético” dos críticos e das características próprias desse gênero, produz enunciações cujo teor ético será depositado na memória coletiva, agregando-se ao etos constante do nome próprio do autor ou da obra por ele avaliada. Em tempo, o verbo “avaliar” nos é aqui de grande utilidade, pois significa “dar valor”. Neste mesmo sentido, o etos putativo nada mais é do que a cunhagem de uma positivação ou negativização de um etos específico.

Analisemos, portanto, o famoso artigo de Monteiro Lobato, Paranóia ou Mistificação? A propósito da Exposição Malfatti, em que ele ataca violentamente a pintora expressionista Anita Malfatti, por ocasião da exposição individual da artista em 1917.

Em geral, nos casos em que ocorre o etos putativo, como nos textos de crítica arte, primeiro se estabelece um modelo paradigmático, de modo que a obra objeto da crítica irá aproximar-se deste modelo (criando-se um etos positivado) ou dele afastar-se (construindo-se um etos negativado). No referido texto de Monteiro Lobato, observamos esta mesma estratégia discursiva já no início do texto. Analisemos o trecho abaixo:

"Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem as coisas e em conseqüência fazem arte pura, guardados os eternos ritmos da vida, e adotados, para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres".

No trecho acima, observamos um conjunto de oposições diádicas. De início, observamos o modelo paradigmático, identificado pela expressão “arte pura”. Há também um jogo de ordem temporal, ou cronológica. O modelo paradigmático de “arte pura” se relaciona diretamente com o “eterno”, pois é reflexo e depositário dos “eternos ritmos da vida”, em um claro esforço de se essencializar o que se entenderia por “boa arte”. Observamos ainda uma metáfora visual, no trecho em que se afirma que a espécie dos artistas que exercem a “arte pura” é composta por aqueles que “vêem normalmente”. Aí está o modelo paradigmático do qual a obra de Malfatti se afasta, segundo o etos putativo desenvolvido pelo texto da crítica.

No parágrafo seguinte, após nomear alguns dos artistas que compõem este grupo que pratica a “arte pura”, Lobato reforça a questão temporal, afirmando que estes artistas-modelos são “sóis imorredoiros”.

No trecho seguinte, Monteiro Lobato inicia o processo de oposições, mostrando que Anita Malfatti se afasta deste paradigma supostamente eterno:

A outra espécie é formada dos que vêm anormalmente a natureza e a interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva.

Separemos, a partir do trecho acima, as oposições:

1- “vêem normalmente” X “estrábica”;
2- “arte pura” X “furúnculos”;
3- “eternos” X “efêmeros”;
4- “ritmo” X “cultura excessiva”.

Dessa maneira, os enunciados acima agregam alguns índices descritivos negativados ao etos do nome próprio Anita Malfatti, com o reforço de mostrar o quão a arte de Malfatti está afastada do modelo positivado. Os enunciados não somente acrescentam os índices descritivos “estrabismo”, “efemeridade”, “furúnculo-doença”, “excesso-desmedida-desproporção” ao etos de Anita Malfatti (não ao sujeito empírico, mas ao nome Anita enquanto discurso), mas também reforça o caráter negativado desses índices ao contrapô-los com outros que se mostram aceitáveis.

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